Sobre a Revista

Foco e Escopo

Entre os gregos antigos, politeía designava, comumente, a maneira particular como se estruturava o regime político de uma determinada cidade. Indicava a abrangência da cidadania entre os habitantes de uma dada polis, delimitava – a partir de critérios como local de nascimento do indivíduo ou de seus pais, idade, gozo de liberdade pessoal, posse de propriedades ou de bens móveis, entre outros – as maiores ou menores competências de cada indivíduo no participar das ações de governo. Pela palavra politeía os gregos indicavam  a forma de governo, a constituição política adotada por uma cidade. Mas o termo politeía pode se prestar a uma mais ampla acepção. Como também estabeleceram os gregos, é o homem por sua natureza um zôon politikon, um ser que ambiciona e que reclama viver junto a outros homens, viver em comunidade – mais precisamente, em uma comunidade estruturada como polis – única forma de existência que lhe permite alcançar e exercer, em sua plenitude, as habilidades e talentos que lhe conferem singularidade entre os seres vivos. Assim, mais do que precisar uma forma de governo, a politeía adotada por qualquer cidade específica expressa, mais amplamente, formas peculiares de sociabilidade construídas pelo homem. Politeía, então, torna-se a tradução das soluções encontradas pelo homem para equacionar as demandas e litígios decorrentes da vivência social.

Afinada com essa perspectiva, a revista Politeia se propõe a veicular a produção científica dedicada a revelar e refletir a complexidade e a diversidade das formas de organização social dos homens no tempo. É, a princípio, uma publicação cuja especialização é a História. Mas uma História amparada por uma matriz epistemológica que a coloca em contraposição à velha História, de feições positivistas, de viés conservador, perseguidora de verdades absolutas, avessa ao experimento e à auto-reflexão. Politeia pretende afirmar e veicular um saber histórico aberto à convivência com as ciências do homem e da sociedade (Sociologia, Antropologia, Filosofia, Geografia Humana, entre outras) e que busca dar conta dos múltiplos níveis e instâncias da realidade dos homens em diferentes temporalidades. Preconiza uma História que se arrisque e avance em territórios pantanosos, descortinando novos campos, fugindo dos jargões das especializações disciplinares que não cultivam a interlocução com outras áreas de conhecimento. Mas, por outro lado, não advoga uma História que renuncie a um estatuto próprio, mergulhando numa espécie de niilismo epistemológico. Pretende, antes, afirmar tal estatuto de forma não dogmática, aventurando-se por fronteiras conquistadas pela razão prática, experimental, sensível e reflexiva.

A referência à politeía dos gregos não expressa a mera busca por um epíteto. Ao contrário,  revela uma concepção alargada, rica, complexa e plural do passado das sociedades humanas, cujo processo de resgate, compreensão e explicação não pode, absolutamente, se constituir em monopólio do historiador de ofício. Preservar, lembrar e reconstituir o passado são práticas sociais recorrentes a todas as sociedades e culturas. Entretanto, os procedimentos epistemológicos e metodológicos de explicação do passado, em suas várias formas, não são absolutos, neutros e destituídos de conteúdos ideológicos e políticos. A história não está dada, aprioristicamente. É sempre um ato marcado pela subjetividade, permeado pelos condicionamentos sociais da práxis humana. Essa dimensão subjetiva da realidade histórica é particularmente acentuada nas sociedades complexas e diferenciadas, hierarquicamente, em grupos e classes sociais que experimentam situações materiais e culturais distintas e, por isso mesmo, elaboram, difundem e assimilam suas próprias representações do passado.

A operação de resgate da história é, então, uma estratégia discursiva que compõe os mecanismos de reprodução de visões de mundo que interessam, de forma mediata, ser difundidas pelos grupos, camadas, classes e frações de classes presentes em determinados períodos históricos. Daí porque o passado, a história, tem sido objeto de disputa. O passado é (re)elaborado e (re)pensado segundo a ótica dos múltiplos projetos sociais em jogo no presente, assim como os procedimentos de silenciamento, de ocultação, de deformação de acontecimentos, de personagens, de fases, episódios e processos históricos. Isso não quer dizer que o estudo das sociedades passadas não possa ser conduzido cientificamente. O que está em jogo é a concepção de ciência histórica, seus pressupostos epistemológicos e instrumentais metodológicos.

É fundamental cultivar e valorizar uma visão de história que enfatize as relações estruturantes dos diversos processos, reconhecendo que a realidade histórico-social é una, porém multideterminada e obra de sujeitos coletivos, de grupos e classes sociais que agem de forma plural em diferentes espaços e situações, não cabendo, ontologicamente, a sua segmentação e fragmentação. É necessário apreender as diversas formas de existência, expressão e representação das distintas classes, grupos e hierarquias sociais no interior de sociedades concretas. E, ainda, não perder de vista a presença e o contributo das camadas e segmentos marginalizados, silenciados pelo discurso hegemônico, bem como o papel que desempenharam na conformação dos produtos históricos. A memória social, em suas diferentes manifestações, é portadora de verdades históricas e tem importância estratégica para a construção de identidades e de afirmação cultural dos diferentes grupos étnicos ou sociais. Neste sentido, é relevante o incentivo à identificação, ao resgate, à preservação e difusão da memória histórica local e regional, estimulando a formação de uma consciência de coletividade e de destinos comuns, adstritas aos múltiplos agentes históricos constitutivos do todo social.

A crescente valorização que o passado, isto é, a História, em suas diferentes formas de expressão, tem despertado em vários grupos sociais e de interesses manifesta-se, por vezes, de forma contraditória, envolvendo desde os movimentos político-sociais, em busca de referenciais identitários, até a mídia sensacionalista e os agenciadores de lazer, incitados pela apropriação fácil e mercantil dos vestígios e legados dos homens de outras épocas. Embora esse seja um território um tanto quanto vago, impreciso e quase sempre impermeável às elaborações acadêmicas, tais grupos sociais e de interesses expressam estratégias legítimas de apropriação do passado e alimentam, de qualquer modo, interesse pelo diálogo dos tempos.

Dessa forma, Politeia se propõe a perseguir uma dupla meta: primeiramente, aspira se constituir em instrumento de aglutinação de diversos segmentos da comunidade acadêmica, estimulando a convivência, o debate e a reflexão em torno de temas de natureza histórico-social de interesse comum, produzindo e promovendo a difusão e a troca de saberes social e culturalmente significativos. Em outro nível de relevância, Politeia se mostra aberta ao pulsar da sociedade como um todo, na tentativa de fazer prosperar a consciência de historicidade do presente e, por isso mesmo, a necessidade de se preservar e recuperar os múltiplos mecanismos pelos quais as ações humanas, no tempo, possam ser compreendidas e explicadas de forma mais sistematizada.