Chamada para o Dossiê Temático. fólio, n.1, vol. 16 (2025)
A atual crise mundial (antipolítica, ecocida e xenófoba) tem sido discutida por teorias que assumiram a perspectiva do Sul Global, a partir dos anos de 1970, quando os danos do capitalismo moderno, cada vez mais identificado à história colonial e colonialista, começaram a se desvelar em proporções inéditas. Em consonância com a emergência, nas últimas décadas, de um quadro de teorizações interessadas em assumir perspectivas do Sul Global, os estudos de literatura têm salientado que as dinâmicas de seu campo colaboraram de modo decisivo para a manutenção e disseminação de conhecimentos, ideologias, estéticas e conceitos vinculados a instituições sexistas e racistas. Posturas hierárquicas, discriminatórias, extrativistas, assentadas em modelos canônicos supostamente universais, que se revelam, contudo, provincianos e regionais, colocam em evidência um “valor de culto” que replica o de alguns poucos centros do Norte Global. Nas periferias do capitalismo, os estudos de literatura são produzidos em universidades ocidentalizadas, cuja episteme sexista e racista não pode ser desnudada apenas por marcadores de cor, pois, além deles, existem marcas de identidade étnica (religiosa, linguística, cultural, regional) mais difíceis de situar, dadas as distâncias entre os mundos e os desconhecimentos mútuos.
Essas questões têm ressoado nos debates realizados em campos literários periféricos graças a um conjunto de disposições teóricas contemporâneas que recusam a naturalização de tradições epistêmicas que deveriam ser revisadas. Alguns têm proposto uma ampla revisão crítica do moderno, outros insistem na necessidade de incluir uma discussão sobre os aportes da história colonial e colonialista para a formação de modelos canônicos incorporados pelas epistemologias do Sul, limitadas por pontos cegos, insuficiências, resignações ou pragmatismos violentos.
Aos poucos, amplia-se o reconhecimento e os modos de formular as compreensões do racismo e do sexismo epistêmico de tradições letradas orgânicas às universidades ocidentalizadas e às suas literaturas restritas aos domínios do impresso e publicadas em línguas nacionais herdadas do colonizador, enquanto longos processos de modernização seguem com o apagamento progressivo das culturas multilíngues, massacradas, ontologicamente negadas ou marginalizadas pelo Estado-nação. O questionamento da assimilação e da naturalização desses pressupostos aparece em estudos teórico-críticos de literaturas do Sul que destacam os modos como suas tradições nacionais têm dividido e hierarquizado os mundos. Vejamos alguns exemplos dessas divisões, tradicionais e naturalizadas, que vem sendo revistas:
. A tendência da literatura brasileira de ilustrar a forma do sujeito nacional e o sentido evolutivo da história da modernização.
. A crise da escrita de compêndios de história da literatura brasileira, quando a expectativa de uma evolução ocidentalista, modernizadora, alcançou seu limite histórico, nos anos de 1970.
. O lugar do exótico ocupado por escritores do Sul Global de projeção mundial, que lidam com discursos de indiferenciação de grandes regiões como a África, a América Latina e a Ásia.
. A persistência da divisão entre os estilos nacionais dos centros, potencialmente universais em sua paridade com a perspectiva eurocêntrica do contemporâneo, e os estilos regionais sobre os quais se discute a natureza de seu vínculo com o regionalismo, com a rusticidade e com o primitivismo (tendo em vista toda a impregnação de anacronismo que essa divisão carrega).
. A ressignificação política da Literatura Comparada, para além do alinhamento das literaturas do Sul aos cânones do Norte, redirecionando, assim, os olhares para os trânsitos Sul-Sul.
. Mapeamentos epistemológicos da história de formação, evolução e esgotamento da literatura brasileira moderna.
. Revisões das literaturas coloniais.